sexta-feira, agosto 15, 2008

Coisas da vida

Aviso desde já que esse texto vai ser uma viagem. Talvez porque seja resultado de pensamentos soltos que surgiram no meio de uma viagem (uma de verdade). Deveriam ter sido duas semanas de férias, mas acabaram sendo dois dias de folga apenas. Vida de advogada não é fácil.


Como as companhias aéreas andam muito elitistas e não querem saber de gente pobre fazendo turismo, curtindo a vida, visitando gatinhos e coisas do gênero, tive que encarar um busão mesmo.


E aí? Bom, aí que vinte e seis horas de viagem (contando a ida e a volta), ainda que eu tenha dormido durante várias delas, é tempo suficiente pra pensar em muita coisa. E ainda tive mais muitas horas de agradável e bem-vinda solidão para refletir sobre a vida, em dois dias que eu passei na praia tendo apenas a companhia dos muitos gringos desconhecidos e vendedores ambulantes em profusão, enquanto meu anfitrião tinha lá seus compromissos profissionais.


Já ouviu falar em observadores de pássaros? Pois é, os caras levam o negócio super a sério. Muitos atravessam continentes apenas para acompanhar as aves que migram nas estações do ano.


Ciente disso, não há razão para você demonstrar alguma estranheza diante dessa declaração: meu hobby é observar seres humanos.


Não se trata de voyeurismo. Não tenho nenhuma tara de obter satisfação sexual ao observar gente fazendo o que não quer (ou, às vezes, até quer) que seja visto.


Pra você entender melhor esse meu hábito – que no fundo é também uma capacidade – posso dar alguns exemplos. Graças à atenção que dedico às pessoas, sou capaz de descrever detalhes que talvez passassem despercebidos por outros sujeitos nas mesmas cenas.


Posso citar meu vizinho de banco durante a viagem de ida ao Rio. Gordinho, cerca de trinta anos de idade, camiseta cor-de-rosa meio curta e justa, esparramado, socando na bolsa vários copos de água mineral servidos aos passageiros do ônibus. Acendi a luz para ler meu livro, ele disse: “Pode acender as duas. Obrigado”. Pronunciando pausadamente cada sílaba. “Será que tenho cara de retardada?”, pensei. Bem, talvez ele fosse retardado. Apaguei a luz. “Pode apagar as duas. O-bri-ga-do”.


O gordinho não levantou uma única vez durante a viagem, em nenhuma das paradas, nem foi ao banheiro. Ônibus leito, eu no banco da janela, maior malabarismo pra saltar a poltrona do dorminhoco, dar uma saidinha pra lavar o rosto e comer um salgado suspeito. Só voltou a dar sinal de vida com o ônibus já próximo da rodoviária, quando exclamou para o nada: “De volta ao Rio!”.


Eu reparo nas pessoas. Não é nem pra botar defeito. Gosto de ver como são. Observo trejeitos no garçom, divirto-me com as entonações que os vendedores ambulantes dão aos estranhos slogans que criam para seus produtos.


Prefiro gastar meu tempo conversando com o Seu Baiano – vendedor de canga, cujo filho avisa quando tem promoção de vôo da Gol pra Salvador na internet – do que dar moral pra um idiota qualquer que se considera erudito. Seu Baiano mora no Rio há 25 anos, acha a cidade linda demais. E me conta que o Carnaval em Salvador “é encantado, todas as maiores bandas do mundo tocam lá”. Comprei dele duas cangas, cada uma R$ 1,00 mais cara do que as que um carioca me ofereceu na calçada em Copacabana. Decidi que a simpatia e bom humor que Seu Baiano esbanjava valiam os R$ 2,00 a mais. Velhinho, de aparência cansada, pele maltratada pelo sol, andando o dia todo na areia carregando um fardo de tecidos coloridos. Sempre sorrindo.


Seu Severino, o taxista, aponta o alto de um morro e me diz: “antigamente isso aqui era uma favela. Morei nela quando era criança. Se todo Governador tivesse feito como o Lacerda, hoje não tinha favela aqui. Não é que eu ache que pobre não pode morar na zona sul, mas é que aí virou essa festa dos traficantes”. Opinião anotada, Seu Severino.


Em Ipanema, fiquei os dois dias ao lado de um quiosque de um carioca malandro que tinha quase de tudo pra oferecer aos fregueses: cadeira, guarda-sol, cerveja, água mineral, refrigerante, água de coco, ducha e muito papo. Perguntou de onde eu era e até quando ficava no Rio. Perguntou-me o que seria da vida dele se eu fosse embora pra não voltar mais. Eu garanti que ele sobreviveria. A mulher dele chegou à praia, com o filho no colo, e nada mais de gracinhas pro meu lado. Não pude deixar de perceber que só ela usava aliança. Ganhei desconto na hora de fechar minha conta.


Voltando da praia pela Avenida Atlântica, um velho maluco me perseguiu por duas quadras, movendo os lábios como se dissesse algo que eu não podia escutar. Entrei no Bob’s, fiz um lanche, fiquei por lá uns 15 minutos. Quando saí, lá estava o velhote, parado e ainda me olhando. Continuou andando atrás de mim. Atravessei a rua com o sinal fechado para os pedestres, e parece que os cariocas têm o maior medo disso. O velho desistiu, resmungando para o semáforo.


Na volta pra casa, espero na fila enquanto o rapaz abre o porta-malas para guardar as bagagens. À minha frente, um jovem casal de namorados. Gente mediana, não feia demais, mas longe de ser bonita. Conversam sobre banalidades de mãos dadas, trocam beijos e abraços sem parar.


Ela se queixa do mau cheiro do lugar, ele explica, com ar de sabedoria, mas sem arrogância: “Rodoviária é assim, cheira a diesel, pneu queimado”, ela ri, mesmo sem ter graça. Ela pergunta se ele quer água, chamando-o de chuchu. Insípidos como um par de chuchus, os dois se beijam, felizes com a superficialidade de seus diálogos e a profundidade de seu afeto. Recíproco.


Eu não conseguia dormir, pensando nas coisas da vida, quando o rapaz acordou e ajeitou a coberta da namorada adormecida. Beijou-lhe a testa e voltou a dormir.


Naquele momento, decidi. Na próxima parada do ônibus, quando, às 5h da manhã, a garçonete me dissesse “bom dia, em que posso ajudar?”, eu pediria: “Por gentileza, me veja uma lobotomia e um namorado bobo, apaixonado e bem bonzinho. Obrigada”.


[continua...]