sábado, março 18, 2006

A pequena Oksana


Durante muito tempo a estrutura familiar que eu conhecia (eu e minha mãe) foi tão equilibrada e segura que, não fossem pelos “presentes” de Dia dos Pais que eu precisei fazer nas aulas de educação artística (cartões, chaveiros, porta-copos e outras inutilidades que meu tio acabou ganhando), eu provavelmente não teria percebido que o “normal” era viver na mesma casa que a mãe E o pai. Vivemos muito bem só nós duas, até minha mãe se casar com meu PAIdrasto, o que não foi de todo ruim, exceto pelo trauma de que eu não pude mais dormir com ela. Quatorze anos de relacionamento depois (12 de casamento), eles se separaram, e hoje sou mais feliz porque, morando apenas com minha mãe e meu pequeno irmão semiletrado, posso andar de calcinha e soutien pela casa.


A minha lembrança mais antiga é um tanto embaraçosa e eu não conto pra ninguém. Tinha dois anos de idade, usava fraldas, tinha lindos cabelos cacheados, e isso é tudo que direi sobre o assunto.


Lembro-me de poucas coisas daquela época: eu brincando no balanço no parquinho, a casa da vizinha em frente ao meu condomínio (se não me engano ela tinha duas filhas um pouco mais velhas que eu, e havia uma banheira no quintal onde nós três brincávamos), o apartamento da vizinha que tinha um fedor insuportável de urina, e o dia em que a filhinha dela me mostrou o penico debaixo da cama: obviamente estava cheio. O remanescente das minhas memórias de antes dos 5 anos de idade foi forjado de fotografias e relatos de minha mãe. Como quando ela chegava do trabalho e encontrava a filha da vizinha calçando meus tênis novos, e ao me cobrar uma explicação, ouvia: “Mas mãe, eu ainda tenho meus tênis velhos, e ela não tinha nenhum”. E tantas vezes mamãe teve que bater na porta da vizinha explicando que eu, aos 3 anos de idade, não tinha autonomia para decidir o que fazer com as roupas, sapatos e brinquedos que ela havia acabado de comprar para mim, de modo que tais bens tinham que ser devolvidos. Bom seria se eu tivesse conservado aquele ânimo desapegado até a idade adulta.


Não me lembro também do Rafael Rodrigues, mas pelo que mamãe me conta, ele foi meu primeiro amor. As “tias” da escolinha “Estrela de Mel” chamaram minha mãe pra ver a gente andando de mãos dadas e dizendo “eu te amo” um pro outro. E ele usava óculos.


E minhas conversas com espíritos (ou amigos imaginários, para os céticos) que assombravam minha mãe.


- Com quem você está falando, menina?
- Com a vó. Ela disse pra você não se preocupar que ela só veio ver como a gente está (minha avó faleceu quando eu tinha um ano e uma semana de vida).


Afirmava cheia de convicção: “Mãe, eu sei que você é minha mãe, mas antes eu tinha uma outra mãe, pai e irmãos. E eu era homem. Morri no mar e os peixes me comeram”.


Passava horas, dias brincando sozinha. Não havia universo que minha imaginação não alcançasse. O instinto maternal exacerbado já era evidente: adorava brincar com minhas 10 bonecas, e quando minha mãe dizia pra eu brincar com apenas uma de cada vez, e não bagunçar a casa inteira, eu explicava que era impossível. Como eu poderia escolher um de meus filhos e abandonar os nove restantes? Ela, como mãe, teria que entender. E entendia.


Adorava brincar de heroína, protagonizando aventuras dramáticas em que a minha cama era um bote salva-vidas de um navio que havia naufragado, e eu passava dias à deriva, sofrendo todas as privações, cercada de tubarões que esperavam que alguém caísse da pequena embarcação durante as tempestades. Claro que eu não estava sozinha no bote, meus 10 filhos estavam comigo.


Tinha ainda uns bonecos em miniatura, com os quais eu construía a vida de uma cidade. Quando outra criança vinha brincar comigo, acabava se entretendo com a vida que eu criava, em vez de brincar com os bonequinhos que eu havia emprestado pra que fizesse o seu próprio bairro. Aquilo me irritava. “Ei, cuida da sua vida!” Até hoje sinto que algumas pessoas gostam mais de observar a vida alheia do que de viver a sua.


Ah! E eu chorava demais. Ainda choro, é verdade, mas agora eu me escondo pra fazer isso. Segundo minha mãe, eu fui um bebê fofinho (goooorda) e tranqüilo, a única no berçário da maternidade que, em vez de chorar, observava tudo ao redor com os olhinhos cheios de interesse. Mas depois de uns 5 anos, eu chorava pra tudo. Pedia um copo d’água chorando. E quando mommy já estava quase surtando, me fechava no quarto e dizia: “a porta não está trancada, quando você quiser sair, é só parar de chorar e abrir a porta”. Eu passava a tarde inteira chorando no quarto pra não dar o braço a torcer, e pra mostrar a dimensão exata do meu sofrimento.


Adorava andar de bicicleta. Uma Caloi Ceci azul (eu era a única menina que não gostava de rosa), com cestinha. Ganhei no meu aniversário de 5 anos. Ou foi no Natal? Hum, não lembro. No mesmo dia ganhei o Felipe, o meu filho preferido, que tinha dois dentinhos.


Tirar as rodinhas da bicicleta foi a glória. O primeiro tombo feio foi aos 6 anos, e meu joelho conserva as cicatrizes até hoje. O segundo foi aos 7 anos, e um dos meus dentes da frente (já tinha alguns dos permanentes) é levemente torto por causa disso.


À noite, eu dormia quase sempre com minha mãe, porque a cama dela era bem melhor que a minha. Dormia sempre virada para ela, porque tinha medo de olhar pra porta e ver alguém lá. E eu jurava que, no momento exato em que eu fechava os olhos, formava-se ao redor da cama um fosso repleto de animais e monstros terríveis, crocodilos gigantes, dragões, prontos pra devorar meu pé caso eu o deixasse pra fora. Se eu abrisse os olhos, obviamente eles desapareciam. Quando precisava ir ao banheiro durante a noite (só quando precisava mesmo, segurava até não agüentar mais, acho que é por isso que até hoje minha bexiga é tão obediente) ficava em pé em cima da cama e saltava o mais longe que podia. Ainda acredito nos monstros, mas hoje sei que eles são humanos e realmente atacam quando estou desprevenida.


Outra crença no mínimo interessante que eu tinha era a seguinte: quando minha mãe ficava muito irritada comigo, eu supunha que ela tivesse sido abduzida (embora eu ainda não conhecesse esse termo na época) e substituída por um alienígena vestido num disfarce idêntico ao corpo da minha mãe. Eu não podia deixar que ela soubesse que eu sabia o seu segredo, caso contrário – lógico – me mataria.


Se eu fosse, quando criança, personagem de novela, seria uma daquelas crianças-prodígio, chatíssimas, que adoram conversar feito adulto. Recordo de algumas situações, festas, eventos, em que, enquanto as outras crianças corriam ao redor da casa, subiam nas árvores, brincavam de esconder, eu ficava sentada no meio de uma rodinha de adultos falando sem parar, e todos me olhavam encantados. Depois diziam pra minha mãe como eu era inteligente. A diretora, na primeira série, chamou minha mãe na escola e disse que eu já era alfabetizada (aprendi a ler e escrever sozinha com os livrinhos que mamãe me dava... Não tinha paciência pra esperar que ela lesse pra mim) e já sabia todo o conteúdo programático daquele ano, então se minha mãe assinasse um tal documento eu passaria direto pra segunda série. Eu fiquei excitadíssima. Minha mãe, psicóloga, explicou à diretora que eu precisava conviver com crianças da minha idade e que não era certo pular etapas. E ainda deu uma bronca na mulher por ter me contado a “novidade” antes de conversar com ela. Continuei na primeira série, frustrada. Incomodando a professora. Enquanto os coleguinhas demoravam a aula toda pra copiar o que estava escrito no quadro, eu fazia o mesmo em 5 minutos e começava a agitar. Então ela passava palavras difíceis pra que eu procurasse o significado no dicionário. Humpf.


Na segunda série a professora organizou um “Concurso de verbos” e eu fui a única que ficou empolgada com a competição. Conjugava todos com uma facilidade incrível (decorar a tabuada, em compensação, me matava), e ao final de uma semana, eu era a única que não tinha cometido nenhum erro. O prêmio era passar um final de semana com a professora. Sim, hoje pareceria castigo, mas naquele tempo a professora era o máximo. Ela me disse que em 2º lugar tinha ficado a fulaninha (uma que gostava de se gabar porque a avó tinha sido diretora do colégio e não passava um dia sem comentar o quanto foi legal sua viagem pra Disney), e que, se eu quisesse, ela poderia ir junto comigo. A decisão era minha. Passei dois dias pensando e concluí que, se ela não sabia conjugar os verbos corretamente, ela que ficasse em casa abraçada com o seu Mickey enquanto eu passeava com a professora. Esta, por sua vez, ficou preocupada com meu comportamento egoísta e conversou com minha mãe a respeito. Cada um com seus problemas, não é mesmo?


Costumava dizer, lá pelos 7 anos de idade, que o transporte rodoviário era um problema grave no Brasil. Que aumentava o custo dos produtos e destruía as estradas. Por que não investiam nas ferrovias, afinal?


Tinha 8 anos quando foi editada a Lei dos Crimes Hediondos. A indignação da população diante do cometimento de determinados crimes motivou o legislador a promulgar tal aberração, que especificou os crimes mais repudiáveis dentro do ordenamento jurídico e, com o fim ilusório de inibir a sua prática, determinou novas penas e majorou outras. Eu ainda não tinha uma década de vida, mas me parecia evidente que o criminoso, antes de praticar o delito, não parasse pra pensar nas conseqüências, na pena à qual seria condenado e nas condições precárias que enfrentaria na prisão, destituído de sua liberdade, família, dignidade etc. “Hum... Homicídio qualificado, pena de 12 a 30 anos... Muita coisa. Melhor eu não matar esse cara por motivo torpe, fútil, ou por meio cruel, ou dificultando sua defesa, nem tampouco para assegurar a execução de outro crime. Se eu conseguir matar o feladaputa sem nenhuma das qualificadoras eu pego homicídio simples, a pena é de 6 a 20 anos... Acho que dá pra encarar”. E atira.


Eu nunca tinha visitado uma cadeia, mas, de ouvir dizer, eu sabia que o sistema não ressocializava ninguém (usando mais uma vez termos que eu não conhecia na época, mas o sentido já era claro). Sabia também que a maior parte dos presos já havia sido condenada muito antes de cometer qualquer crime. Condenada à marginalidade, à falta de oportunidade, ao analfabetismo, ao preconceito. Não que isso justifique atos criminosos, mas com que moral o mesmo Estado que não proporciona condições dignas de sobrevivência a todos os cidadãos vem agora lançar o nome do cara ao rol de culpados e seu corpo cansado a um cemitério de gente viva? Eu sabia, sempre soube que anos dentro de uma prisão, especialmente nas condições penitenciárias brasileiras, somente serviria pra tornar uma pessoa muito pior do que ela era antes. Com 8 anos de idade, eu era a menininha petulante que dizia: “Essa lei não vai dar certo”. Praticamente uma profecia (vejam-se os índices crescentes de criminalidade e os depoimentos recentes da própria Glória Perez, autora de novelas que, traumatizada pelo homicídio de sua filha, que com certeza deve ter sido muito mais relevante que todos os homicídios de pobres que acontecem diariamente nos botecos, articulou uma campanha nacional para que fosse incluído no rol dos crimes hediondos o homicídio qualificado, lacuna que foi suprida pela promulgação da Lei n. 8.930/ 94, que alterou o texto original da lei. Hoje Glória afirma que não acredita mais na justiça do Brasil).


Na faculdade conheci alguns conceitos e estudos realizados por caras realmente geniais como Zaffaroni e Alessandro Baratta, que me fizeram perceber mais uma coisa elementar: se o indivíduo já era considerado anti-social antes de sua prisão, de que forma excluí-lo da sociedade pode cumprir a função de ressocializar? É utópico pensar em ressocialização quando nunca houve a socialização. O objetivo – de quase impossível execução – deveria ser então o de transformar os perniciosos valores do condenado em valores proveitosos para a sociedade. Como? Isso eu ainda não descobri, mas tenho minhas visões fantásticas ainda sem possibilidade de aplicação prática. Ainda.


Considero o meu primeiro beijo o marco de passagem da infância para a próxima fase de minha vida, muito mais tortuosa. Foi ali que meus sonhos românticos adolesceram e eu me tornei ainda mais arrogante e intragável. Se a minha infância teve fim, portanto, aos onze anos de idade, me assusta perceber que nos 13 anos que se seguiram eu aprendi tão pouco, de modo que todo o conhecimento que adquiri serve apenas para reiterar as minhas crenças infantis. Ou eu era muito esperta naquela época ou sou muito estúpida agora. Ou os dois.