segunda-feira, janeiro 22, 2007

A partilha

Há poucos dias estava procurando uma sapateira para o meu quarto. Entrei numa loja, maldita loja brega com seus vendedores bregas e o rádio podre tocando Zezé di Camargo e Luciano. Vontade de matar os filhos de Francisco enquanto eles choramingavam: “no meio da conversa de um caso terminando, um fala e o outro escuta, os olhos vão chorando”...

Saí da loja antes de ser atendida. Continuei andando e entrei em outro estabelecimento. Os alto-falantes reproduziam a voz da Ivete Sangalo. “E quando eu penso em ir embora você não quer me dar razão, me diz que eu tô jogando fora o amor que tem no coração”... TAQUIPA!

Pensei comigo que a vida seria tão melhor se fosse exclusividade de gente brega sofrer assim...

Até uma semana atrás eu considerava inconcebível duas pessoas que se amam virarem as costas uma para a outra e partirem em direções opostas. Hoje considero inconcebível duas pessoas que se amam permanecerem juntas e ferindo uma à outra.

Tudo indica que a dor intensa que sentimos agora é melhor do que a dor constante que proporcionávamos um ao outro com um sadismo inexplicável...

E assim, chega a hora de separarmos nossos caminhos e procedermos a divisão dos bens. Cada um cuida do seu quinhão daqui pra frente.

As fotos que estão no meu PC eu deleto, e você decide o destino das que estão no seu. As que você tirou com seu celular e eu não cheguei a ver são só suas, eu acho. Os presentes que eu dei são seus, os que você deu são meus. As minhas saudades torturam a mim, as suas, a você. Os bilhetinhos, eu entendo se você precisar se livrar deles. As minhas lembranças ficam comigo. As suas, você pode guardar até que esmaeçam e percam sentido no velho baú da memória.

Os sonhos que acalentei continuam tendo você como protagonista. Se não puderem ser realizados jamais, terei que inventar novos sonhos, nunca substituir o personagem principal. Não posso definir o destino dos seus sonhos. Fica a seu critério.

A minha metade do coração fica com você e a sua fica comigo. Não podemos dividir as músicas, sei que são sua paixão. As que me lembram de você serão sempre minhas, mas você tem direito ao usufruto vitalício.

As piadas só nossas serão depositadas num lugar que só poderá ser visitado por qualquer um de nós, juntos ou separados. Prometa-me que ninguém mais poderá entendê-las.

E ninguém mais será mamute pra você nem pra mim. E quando o primeiro prédio desabar em Santos, lembraremos de quando olhamos juntos para ele na mesma orla, e pensaremos em “cumplicidade”, com bolhas nos pés, beijando na chuva que só cai em alto mar.

Brooklin, Santos, Vila Marari, apartamento da Lê, Juvevê, Mercês, Brasil 500, sítio em Atibaia, casa da Nataly, Friday’s, Subway, Mercadorama, shopping Morumbi, espera no estacionamento enquanto o moço gravava nossos nomes nos pingentes, exposição de brinquedos, foto com o Darth Vader e com o Topo Gigio, trufa furtada, compras entregues na sua casa, Bourbon Street, Saloon, Market Place, Metrô, Liberdade, show da Jane Monheit, Shopping Mueller, quiosques, Hot Valentine, baile da Ciça, cinema, DVDs, hot dog do Josias, pronto-socorro do hospital Evangélico, Mr. Blues, pizzaria com o Rodrigo e seus amigos, Cásper Líbero, aula do Fuser, Asterix, restaurante japonês com Newton e Luciene, Faculdades Curitiba, aula de Direito Civil e de Direito Penal Econômico, você dormindo na carteira, Intervalo’s, bar em que você incendiou sua bolsa, jurupinga, bar no píer de Santos, sua avó VIP, a comida da sua mãe, a comida da minha mãe, Twingo, Palio, Gol, Clio, aeroporto, rodoviária, suco, água de coco, água e muito, muito guaraná diet, panificadora da esquina, barbeiro corinthiano, balança na farmácia, banquinha de revistas, dentista surda, festa árabe da Thathy, show do U2, Pão de Açúcar, ponto de ônibus, Kiko, Clark, Nina, Valente, Nero, Elvis, Priscilla, Carrie, Baygon e o peixe beta que eu não sei o nome, estante feita por você e pelo Newton, sua roupa cheia de verniz e a mão cheirando a solvente, panificadora podre da V. Marari, banco 24 horas, Nossa Caixa, Banco do Brasil, todos os shoppings e galerias de Santos, a Diana Ross cabeleireira, locadora, pão com catchup e guaraná diet no mercado de madrugada, Ah Bar Zen, seu violão, Pangya, mola encolhida, beijo da tia Ivete, massagens, churrasco em casa, jantarzinho feito por mim, flagras de assaltos à geladeira de madrugada, balas na mesa de centro da sua mãe, TV a cabo, sofá da sala, furo na cueca, cafuné que não te deixa dormir, cruzadas de pernas, bermuda florida esquecida na minha casa, creme para mãos da Avon, meu descongestionante nasal, cinzeiro mágico que gira, mala na portaria, posto de gasolina, banho de banheira, banho de chuveiro, faxina no seu quarto, cama de solteiro, cama de casal, V8 no Mustang Sally, escova de dentes emprestada, provador de loja, bolas chinesas, lixo na sua gaveta, ventilador de teto, a TV que desligava sozinha, lentes dos óculos trocadas pelo tio japonês, prova de óculos escuros em cada quiosque da Chilli Beans, sem nunca levar nenhum, Shopping Curitiba, você e os bichinhos de pelúcia, observação do zoológico humano na praia, Grouxo Marxismo, Porno Política, seriados, filmes, músicas, promessas, fotografias, livros, planos, viagens, segredos, desejos, uma queimadura de cigarro no meu braço que já tem 10 meses...

Tantas e tantas coisas e ainda faltam outras tantas. E observe: não precisei sequer adentrar o universo digital.

Como faremos essa divisão? O que fica com você e o que fica comigo? E as outras lembranças, as inconfessáveis, e as que ainda estão ocultas em algum cantinho recôndito da memória e emergirão num momento inesperado junto com um sorriso saudoso ou olhos cheios d’água?

Será que ainda vamos nos encontrar? E será que seremos, então, as pessoas que gostaríamos que fôssemos?

E a dor? A minha e a sua... A nossa. Indivisível e indelével. Ainda não descobri o que fazer com ela.

E o amor? Vai se transformar? Vai se extinguir? Vai reacender? Vai virar lembrança? Desconheço as respostas.

Mas o moletom vermelho fica comigo.