quarta-feira, março 18, 2009

Oksana e a natureza: uma história de amor

O e-mail da agência de turismo prometia um final de semana "em contato com a natureza”. Recomendava que os aventureiros levassem roupas confortáveis, dois pares de tênis (um para o uso normal e outro para molhar), mochilas pequenas, porque o espaço na Van é reduzido, em relação a um ônibus.

Ao fim de uma semana foda pra caralho levemente cansativa, na noite de sexta-feira, tratei de responder todos os scraps de aniversário de forma individualizada, tomar banho, comer, descansar, mandar um e-mail para a professora elogiando a aula de Atualidades no meu curso, resolver palavras cruzadas, enfim, fazer todo o possível para protelar ao máximo a divertidíssima tarefa de organizar mentalmente a lista de itens imprescindíveis e, mais legal ainda: localizá-los no mundo físico e transpô-los para o interior da mala.


Isso tudo terminou por volta das duas horas da manhã. Preparei-me, então, para maravilhosas 3 horas de sono, que quase nem chegaram a ser perturbadas pelo pessoal animado que ia ou voltava da Woods, com o som ligado no último: “Eu vou fazer um leilão... Quem dá mais pelo meu coração?”. Ah, desgraça, se eu tivesse a chance, cravaria uma estaca no peito dessa besta e ela não teria mais o bem a ser leiloado. O trem (cujos trilhos passam a uma quadra de minha residência) também me proporcionou momentos de súbita agitação, com sua discreta buzina soando e ensurdecendo a população num raio de 10 km. Para concluir, um simpático pernilongo me elegeu como refeição da noite. Formidável.


Com o habitual bom humor matinal realçado pelas experiências tão agradáveis da noite, saltei da cama às 5 horas da madrugada, cantarolando e dando bom dia ao sol. Ou melhor, à lua, já que o sol ainda nem tinha aparecido.


Já no confortável veículo que nos conduziria ao nosso fatídico destino, eu e meu namorado descobrimos, cheios de alegria, que os bancos em que nos sentamos, os últimos da Van, além de terem um espaço diminuto para as pernas, eram os únicos que não reclinavam. E o ângulo formado entre o assento e o encosto deixava nossos narizes mais próximos dos nossos joelhos do que gostaríamos. Mas, antes que pudéssemos saltitar de emoção, os amigos sentados à nossa frente reclinaram seus bancos e esmagaram nossas patelas. Algo me dizia que aquela viagem de 215 km seria, de certo modo, a mais longa da minha vida.


Quando já havíamos perdido a fé na humanidade e as esperanças de sair dali com a capacidade de locomoção intacta, eis que surgiram pessoas com um resquício de bondade em seus corações que, quando paramos na beira da estrada para um lanche, propuseram-se a trocar de lugar conosco pelo que restava da viagem. Desconfio, porém, que aquele ato de generosidade não teria acontecido se não fosse o desconhecimento, a ingenuidade daquelas pessoas. É que elas não imaginavam o quanto os tais bancos se assemelhavam a instrumentos de tortura medievais, e pensavam que nossas feições de agonia tinham um quê de exagero. Bem, agora elas já sabem...


Chegamos, enfim, ao Parque Estadual do Guartelá. Segundo informação obtida num site de ecoturismo, “existem duas opções de trekking pelo parque: uma trilha que leva ao mirante, e outra que visita as inscrições rupestres. Esta última precisa ser agendada com antecedência no Centro de Visitantes, pois é uma trilha longa, com algumas restrições”. Adivinha qual nós fizemos? As duas.


As paisagens são realmente incríveis (sem ironia). Não cheguei a examinar minuciosamente as tais inscrições rupestres. Digamos que meu interesse pelos rabiscos ficou um tanto reduzido quando soube que deveria subir numa enorme rocha desprendida do chão e à beira de um precipício para vê-los de perto. Mesmo de longe, deu pra ver que o pessoal pré-histórico por aquelas bandas não tinha vocação alguma para a arte. A gente esperando um desenho do Piteco abatendo um Pterossauro, fazendo uma fogueira e tal. Maior decepção. Por outro lado, a inscrição na pedra de um nome feminino (Silvia, Priscila, sei lá), demonstra que até hoje ainda circulam pela região criaturas bastante primitivas.


Enquanto caminhávamos por horas a fio em meio a tanta pedra e mato, lembrei-me do e-mail da agência e fiquei me perguntando quanto tempo poderia demorar ainda para chegar à natureza prometida. Cheguei a perguntar para uma das moças que trabalham no parque se estávamos no caminho certo, pois já estava começando a duvidar de que nosso guia sabia para onde estava nos levando. Não é possível que a natureza seja tão longe, pensava. A moça pareceu não me compreender. Realmente esse pessoal é muito despreparado.


Agora entendo porque muito mais pessoas vão ao shopping do que à natureza: é mais perto, não tem insetos e ainda há escadas e esteiras rolantes, além de que a praça de alimentação oferece opções mais ricas em sabor e gordura trans do que a provisão de frutas, barrinhas de cereais, biscoitos e misto frio fornecida pela agência.


A grande armadilha dessas trilhas ecológicas é que você acaba se distraindo com as lindas paisagens, o canyon imponente, a flora exuberante, a fauna extraordinária (um grupo de punks tatuados da cabeça aos pés se banhava alegremente nas águas geladas), e, quando menos percebe, é hora de voltar, encarando uma subida de 1.251.364.897.654.321.259.000 km até chegar à entrada do parque. É nítida a sensação de que tem um filho de uma quenga adicionando mais uma reta à estrada depois de cada curva vencida.


Já nesse ponto, garganta seca como se tivesse tomado um balde de areia, pulmão virando do avesso, pernas bambas, eu amaldiçoava o momento em que tive a idéia de comentar, tanto com minha melhor amiga, quanto com meu namorado, que achava que seria super legal sair da rotina e encarar um final de semana de intensas aventuras, que eu só não iria mesmo por falta de grana. Ao que os dois se mancomunaram e resolveram o problema, dando-me a viagem de presente. de aniversário Bem, agora preciso esperar até o ano que vem para comentar com eles que seria super legal fazer uma série de sessões de fisioterapia para conseguir voltar a caminhar, pra ver se eles me dão de presente, hehehe.


Mas, calma, pessoal. Devagar com o andor. A essa altura os músculos das minhas pernas, virilha, quadril, pés, costas já estavam praticamente inutilizados. Enfim, grupos musculares que eu nem sabia que existiam haviam despertado numa dor aguda. Massss... Meus braços ainda estavam bem. O que significa, é claro, que era chegada a hora do rafting.


O rio era bastante tranqüilo, com poucas corredeiras. Traduzindo: remamos pra caramba.


Depois de tudo isso, rodamos por algum tempo, com nossas roupas encharcadas, dentro da Van com o ar condicionado ligado na temperatura Sibéria, o que colaborou bastante para assolar a resistência do meu pobre organismo maltratado e surrado.


Na chácara onde ficava a nossa pousada, deparamo-nos, após um banho quente, com aquele céu estrelado que só existe no interiorzão (shopping 1 x natureza 1). Aí rolou aquele jantarzinho básico: arroz, feijão, farofa, carne, salada, tudo com o incomparável tempero de panelas de ferro, fogão à lenha, aquela coisa rural, sabe? Bem light. E o pratinho delicado que se assemelha à refeição de um estivador, claro.


Depois, Andrea, a italiana que fazia parte de nossa excursão – simpaticíssima e que, morando no Brasil há apenas dois meses, já fala português melhor do que muitos brasileiros que conheço – nos ensinou um jogo de baralho chamado Buongiorno Signor. Segundo suas palavras: “fica mais divertido quando tem álcool”. Não seja por isso. Servimos os copos com a pinga curtida dentro de vasilhames com frutas e começamos o jogo. A pessoa que perdia, em cada rodada, tinha que tomar um gole da cachaça. O pessoal começou a me acusar de perder de propósito, mas eu juro que os reflexos lentos eram fruto do cansaço.


Como era de se esperar, formou-se uma rodinha em torno de um violão. Fugi quando alguém sugeriu Eduardo e Mônica (hoje, quatro dias depois, devem estar chegando perto da última estrofe, quando Eduardo fica careca, Mônica fica gorda, os dois vão pra pqp, têm 12 filhos, e param de encher o saco).


Alguns aventureiros saíram ainda à noite para ver a cachoeira, que dizem ser uma visão belíssima à luz da lua. Preferi acreditar na opinião alheia e curtir o visual do meu travesseiro, abraçada ao meu gatinho, coisa linda demais.


No domingo, cedinho, meu amor me acorda feliz e sorridente, todo carinhoso. Ainda bem que ele tem bom humor que basta para os dois. Enquanto isso, arrastei-me para fora da cama e segui para o café da manhã, sorumbática.


Não deu nem tempo de digerir o queijo branco e o bolo, já estávamos encarando uma trilha tenebrosa morro acima. O único jeito para erguer uma das pernas para alcançar o alto de mais uma pedra era alçá-la com o auxílio das duas mãos. E assim, consegui chegar, chorando, ao alto da cachoeira do Puxa Nervos, para fazer o cascading (rapel na cachoeira). De pronto, todos os integrantes da excursão compreenderam o conteúdo psicológico daquela trilha: era tão sofrido subir por ali que qualquer pessoa concluía, de imediato, ser mais fácil encarar o medo e se atirar lá de cima amarrada a uma corda do que se estropiar morro abaixo.


Os guias, então, mostraram as diversas cordas, mosquetões, equipamentos e procedimentos de segurança que tornavam o esporte mais seguro do que jogar xadrez com uma velhinha. Dadas todas as instruções, a idéia era nos convencer de todas as formas possíveis que a única forma de algo dar errado é, basicamente, se acontecer um terremoto ou se a pessoa for atingida por um raio durante a descida. Ainda assim, olhar lá de cima e visualizar, 45 metros abaixo, as formações rochosas pontiagudas, é algo que faz todo mundo repensar. Será que eu preciso mesmo fazer isso? O que eu estou querendo provar, afinal? Onde fica a saída de emergência? Enfim, essas coisas.


Tínhamos direito a descer duas vezes, mas todo mundo, ao chegar lá em cima, decidiu que abriria mão da segunda descida. Chegado o grande momento, lá fomos eu e meu delícia, conduzidos pelo guia que nos pareceu mais confiável. Depois que ele contou que resgatou uma moça de 130 kg que desmaiou no meio de uma cachoeira de 85 m, desceu com ela e nadou até a margem, concluí que se ele deu conta da gorda, não seria eu um problema pra ele. Olhei para o resto do pessoal e pensei: podem ir com o rapaz ali que ele parece ser bem confiável, mas eu só desço com o Rambo aqui.


Depois dos primeiros passos desajeitados, o resto é só alegria, o visual é maravilhoso, a sensação é incrível. Chegando lá embaixo, imediatamente decidimos (assim como todo o resto do pessoal) que iríamos de novo. Nessa segunda vez rolou até beijo na boca debaixo da cachoeira, nas alturas, em meio aos vários arco-íris que se formavam à nossa volta.


Voltamos à pousada para mais uma refeição básica – o pessoal perguntou se eu tinha trazido o equipamento necessário para escalar meu prato.


Em seguida, a última atividade do final de semana, preparada especialmente para destruir os únicos músculos que ainda permaneciam intactos: a cavalgada.


O pessoal foi montando nos bichinhos, e eu ali, esperando algum moço me ajudar a subir em algum animal. Claro que eu devia ter desconfiado que havia algo errado com a Palusa, a última égua que sobrou, com um ar cansado e o olhar perdido no horizonte. Já pra começar, explicaram-me que ela não atendia aos comandos do mesmo jeito que os outros eqüinos, tinha uma manha pra ela entender o esquema das curvas e tal.


Bem, lá fomos nós. Aos poucos o pessoal foi se afastando, lá na frente. E eu tentando entrar num entendimento com a Palusa. Não queria partir para a agressão, como sugeria o guia, então tentei de todas as formas chegar a uma composição amigável. Mas a Palusa ia se arrastando, coitadinha. Até que simplesmente parou. Cheguei a cogitar a hipótese de terem me enganado e entregue uma mula, agora empacada. Mas o mistério logo se desfez, quando eu ouvi um “ploft” lá na traseira. Conversei com a Palusa: “Ah, entendi o problema. Comeu demais no almoço, né? Tudo bem, eu te entendo. Mas agora que você se livrou desse peso extra, vamos andar, ok?”


Ok nada. A Palusa continuava naquela indisposição. O guia acabou confessando que a Palusa estava com as patas sensíveis, por ter andado num tipo de solo ao qual não estava habituada, mas que o problema dela era mesmo preguiça, e eu devia chibatá-la com a corda pra que ela andasse. Ah, tá, olha a minha cara de pessoa que fica maltratando um pobre animal ferido! A essas alturas fiquei tão comovida que pensei em descer e levar a Palusa nas costas, coitadinha.


O consolo é que a guia da excursão, Claudinha, estava num desacordo maior ainda com seu cavalo Vassoura. Indignada, reclamava que o Vassoura era um tarado e só queria cheirar o traseiro dos outros animais em vez de andar. A Regina, montando o voluntarioso Rochinha, só faltava andar para trás. Assim, eu não fiquei totalmente abandonada com a Palusa.


Chegamos, então, a outra cachoeira localizada dentro dos limites da chácara. Claro que algumas pessoas não resistiram e arrancaram as roupas para se atirar naquela água deliciosa – um grau centígrado a menos e passaria ao estado sólido. Eu preferi ficar do lado de fora sendo atacada por insetos mutantes que se alimentam, inclusive, de repelente.


Na volta, troquei de veículo com a Aline, parceira de excursão que estava um pouco apavorada com a desenvoltura da égua que montava. Disse adeus à Palusa, recomendei que se cuidasse e não pisasse onde não devia. Voltei com a Lupita, égua cheia de vida e de gases. Cada passo era um flato. Imagina o que era o animal trotando? Praticamente uma metralhadora.


Enfim, despedimo-nos das paisagens bucólicas, do aroma do campo (longe da Lupita, por favor), do céu claro de estrelas e retornamos à civilização.


Na segunda-feira pela manhã, levantei da cama perguntando se alguém havia anotado a placa do caminhão que me atropelara. Isso antes de levar o maior susto do mundo com a cara da criatura que surgiu no meu espelho, pálida, descabelada, com olheiras mais profundas do que nunca (Será um panda? Um guaxinim? A Gretchen?).


O couro cabeludo ardendo, torrado do sol, lindas marquinhas de um bronzeado uniforme (marquinha de top, de blusa, de short), nariz descascando, marcas de picadas de insetos – parecendo rodelas de pepperoni –, o pescoço, os ombros, todas as vértebras, o quadril, as pernas, os glúteos, os pés, os braços e – por fim – a cabeça extremamente doloridos, as roupas que um dia foram brancas, agora marrons. A pergunta ecoava na cabeça: “por quê? Por quê?”. E o pior de tudo, o mais inexplicável, o mais absurdo de toda a situação, é a animação diante do novo e-mail da agência, prometendo um final de semana ainda mais radical... I must be out of my mind.